Desafios da missão de alfabetizar

Como saber se o aluno foi alfabetizado? Essa questão, que desafia a muitos professores e métodos, foi tema de seminário internacional promovido peloInstituto Alfa e Beto (IAB), em agosto de 2014, em Belo Horizonte (MG). Dois pesquisadores franceses presentes no encontro conversaram com a Gestão Educacionalsobre equívocos, experiências bem-sucedidas e desafios para o aprendizado do aluno nessa fase determinante para os outros anos da vida escolar. Johannes Ziegler e Frank Ramus, especialistas em Ciências Cognitivas (veja mais aqui), insistem na qualificação do professor, tanto do alfabetizador quanto do que atua na pré-escola. Esses profissionais também devem estar preparados para identificar alunos com dificuldades de aprendizagem e definir ações específicas para que não haja desestímulo. Ambos citaram exemplos dos docentes da Finlândia, país com excelentes índices de aproveitamento escolar, inclusive no período de alfabetização. Algumas das medidas destacadas são o treinamento constante recebido pelos docentes dos primeiros anos da escola e o reconhecimento que eles têm como profissionais de grande importância no meio social.

Ramus, que é pesquisador do Laboratório de Ciências Cognitivas e Psicolinguística da Escola Normal Superior em Paris, observa que aprender a escrever não é simples como se pensa, pois envolve várias habilidades, como conectar letras e soletrar palavras para dar sentido à ação. Isso se dá na compreensão da leitura, que exige da criança atenção e conexões rápidas. “Leitura e alfabetização não são uma coisa só, há muitas questões envolvidas”, afirma. Ao longo dos anos pesquisando o assunto, o especialista identificou que muitas instituições erram no quesito programa de ensino. Para ele, um bom programa precisa ser explícito, detalhado e preciso. Deve ter objetivos claros para cada ano escolar e indicações práticas sobre os métodos para alcançar esses objetivos. “Os professores têm que ser treinados para atingir essas metas”, adverte.

Os especialistas ouvidos acreditam que as avaliações educacionais de larga escala, como as promovidas no Brasil, podem ser de muita valia para medir o nível do ensino, mas ambos recomendam partir de uma meta clara. Eles também alertam que as avaliações não substituem o acompanhamento da própria escola. Johannes Ziegler, diretor do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Provence, reitera que as escolas não devem esperar soluções fáceis para serem bem-sucedidas na alfabetização. “Não tem mágica, é treino”, afirma, referindo-se ao caminho de apresentar as letras e, depois, os fonemas para as crianças, com os intuitos de criar uma consciência no aluno e fazer dele um leitor autônomo. Ele prefere a insistência no aumento da consciência do fonema do que métodos visuais, de associação de palavras com imagens. Da mesma maneira, Ziegler acredita que fluência só é obtida com leitura, e o caminho é mesmo incentivar as crianças a ler o máximo possível.

Os dois pesquisadores falaram da idade ideal para a alfabetização, que pode variar em cada país, mas que não deve ocorrer cedo demais, antes dos cinco anos, pois a criança, de maneira geral, ainda não está pronta. Ambos defendem que é preferível focar no desenvolvimento de aspectos como inteligência social, criatividade e brincadeira, importantes para o amadurecimento e as descobertas da criança na fase pré-escolar.

ENTREVISTA 1

Johannes C. Ziegler

Diretor do Laboratório de Psicologia Cognitiva da Universidade de Provence, na França

Gestão Educacional: O senhor citou (na palestra) o exemplo da Finlândia, considerada modelo na área de alfabetização. Lá as dificuldades de aprendizagem dos alunos são identificadas desde cedo. Como ocorre essa identificação precoce?

Johannes C. Ziegler: Na Finlândia, as crianças começam a aprender a ler aos sete anos e aos oito já estão alfabetizadas. [Finlandês] é considerada uma língua mais fácil de aprender. [A Finlândia] é um país que origina muitos estudos sobre educação devido a algumas particularidades. Lá os professores estudam continuamente. Na faculdade, eles têm contato com o que a ciência diz sobre alfabetização e, mesmo depois de formados, em sala de aula, passam por constantes cursos, reciclagens e formação continuada, que seguem reforçando como alfabetizar os alunos de maneira eficaz. A segunda questão muito importante é que toda escola tem dois professores nessa fase de alfabetização. Não que eles estejam o tempo todo em sala de aula com as crianças, mas há um professor alfabetizador e um professor especializado em dificuldades de leitura e transtornos de aprendizagem. Uma vez que o professor detecta que o aluno pode ter alguma dificuldade, esse outro profissional trabalha essa criança para identificar o que ela tem e qual pode ser o tratamento. Tudo é resolvido na escola.

Essa estratégia está entre os principais motivos para o sucesso do modelo educacional na Finlândia?

Ziegler: Também há outro fator: na Finlândia, os professores são reconhecidos socialmente. Ser professor lá é muito importante, é como ser advogado ou médico. O prestígio da profissão é alto, o que atrai pessoas bem qualificadas e motivadas a trabalhar pelo bem do aluno.

O conhecimento de neurociência e psicologia cognitiva é importante para a formação do professor. No Brasil, nem sempre os cursos de formação docente dão esse peso a esse conhecimento. Isso ocorre em outros países?

Ziegler: Esse conhecimento é essencial e está relacionado ao trânsito entre a prática do professor e as pesquisas científicas. A Finlândia, da qual estamos falando, é um país muito pequeno. Os cientistas têm trânsito em relação aos responsáveis pelas políticas públicas, e a informação circula de modo que as crianças são alfabetizadas de maneira mais eficaz. Claro que em um país grande isso é mais difícil. Na França, há um movimento dos professores de se posicionarem contrários à ciência. Eles falam que a sala de aula não é laboratório e que as crianças devem aprender como a tradição ensina. Isso é normal, mas não se deve ignorar a contribuição que pode advir das pesquisas científicas. Na Inglaterra houve um caso interessante. Os professores costumavam ensinar de acordo com o método global. E o Ministério da Educação pediu aos cientistas um relatório sobre qual era o melhor método para alfabetizar. O retorno dos pesquisadores foi de que aquele não era o método mais indicado, mas sim o método fônico. Com base nisso, houve mudança na diretriz da política pública da educação, segundo as recomendações dos cientistas.

Esperar até por volta dos nove anos de idade do estudante para agir, em caso de dificuldade na alfabetização, é um equívoco?

Ziegler: Os professores costumam dizer: Como identificar que o aluno tem dificuldade de leitura se ele ainda não sabe ler? Há fatores de risco que você consegue identificar precocemente, possibilitando uma intervenção precoce. Isso faz com que, na hora de alfabetizar, o professor, sabendo dessa predisposição à dificuldade de leitura, acompanhe mais de perto o aluno, garantindo que ele aprenda a ler no ritmo dele. Não é preciso esperar até a terceira ou a quarta série para saber se a criança tem ou não alguma questão específica. Isso exige que os professores sejam treinados para que na educação infantil ou no início da alfabetização sejam capazes de identificar esses fatores de risco e dar apoio maior a esses alunos. Se a intervenção ocorre só aos dez anos, muitas vezes o aluno já desistiu de aprender a ler, e o professor já está desestimulado a ensinar porque acha que o estudante não tem a habilidade necessária para esse aprendizado. Assim, ele já perdeu três anos da escola sem saber ler e isso é devastador para a trajetória de uma criança.

E sobre o ensino ortográfico visual focado na associação imagem-letra?

Ziegler: É um erro achar que a leitura precisa ser muito divertida. Alguns professores argumentam que esse processo sistemático que eles precisam ensinar à criança – do grafema para o fonema – é uma atividade chata e, segundo essa argumentação, a criança acaba não tendo prazer na leitura. Entretanto, a decodificação é um processo sistemático e todo dia precisa se devotar a ela um tempo no primeiro ano de alfabetização. Depois o professor pode contar história, brincar, abordar o aspecto lúdico da leitura, mas sem abrir mão desse processo, do grafema para o fonema, que precisa acontecer.

Como o senhor avalia o início da alfabetização para crianças com menos de seis anos? Qual sua opinião acerca das pré-escolas que propõem o ensino de conteúdos complementares, como informática e finanças?

Ziegler: Não acho que seja bom começar a alfabetizar as crianças muito cedo. Alguns processos fisiológicos ainda não estão maduros nelas, e existem bases muito importantes para a alfabetização, que precisam ser construídas na educação infantil. Se o professor não constrói essa base e já deseja alfabetizar a criança, acredito que não seja indicado nem apropriado. O professor pode, sim, usar a linguagem, algumas atividades com som e fonemas, que, em conjunto com a atividade de brincar, são importantes na educação infantil. No entanto, o processo sistemático de alfabetização não é indicado na pré-escola. Em relação a conteúdos como informática nas escolas, tudo depende do uso. Eu gosto da tecnologia, mas esse uso precisa ser bem estruturado. Não é só entregar um computador para a criança e falar “brinque”. Precisa ser uma atividade planejada, com programas que podem contribuir e ajudar na construção dessa base da alfabetização que acontecerá no ensino fundamental.

O Brasil promove avaliações nacionais para medir o desempenho dos alunos em diferentes fases da vida escolar. É o tipo de método mais eficaz para avaliar se a criança foi alfabetizada?

Ziegler: Avaliação é sempre algo positivo e importante, mas ela não pode ser descontextualizada, ou seja, ser utilizada para se ter um retrato, mas não se fazer nada com ela. Com base na avaliação, deve-se identificar os problemas e trabalhar neles. É importante uma avaliação nacional para que se tenha um panorama, mas também é importante que a alfabetização seja periodicamente avaliada na sala de aula pelos professores. O aluno pode fazer um teste hoje e não ir bem por alguma razão pessoal. Os professores necessitam ter consciência de que a alfabetização precisa ser avaliada durante o processo, e não só no final. Não se deve usar o resultado dessas avaliações para criar rótulos: essa criança está aqui e a outra, ali. Não é para isso que a avaliação foi feita, mas para identificar avanços e obstáculos que precisam ser vencidos.

ENTREVISTA 2

frank ramusFrank Ramus

Pesquisador do Laboratório de Ciências Cognitivas e Psicolinguística da Escola Normal Superior em Paris

Gestão Educacional: Com base em sua afirmação durante a palestra, é um erro tratar leitura e alfabetização como uma coisa só?

Frank Ramus: A alfabetização inclui a leitura, mas alfabetizar também inclui escrever, escrever com fluência, além de coisas que fazem sentido e, o que é bem importante, entender o que se está lendo. É por isso que alfabetizar não se resume a ensinar a ler. Repito que alfabetizar contém a leitura, mas não é a mesma coisa, e os professores devem ter noção dessa amplitude.

Esse primeiro contato com a leitura influencia a formação de adultos leitores?

Ramus: Sim, é importante para a criação de um hábito, de uma intimidade com a leitura, de uma fluência. Em geral, muitas crianças têm esse contato com livros e textos escritos em casa, com os pais, e isso ajuda no processo de alfabetização quando eles chegam ao ensino fundamental. Para creches e pré-escolas, é ainda mais importante colocar as crianças em contato com os livros quando elas são de famílias desfavorecidas e não têm a cultura da leitura em casa. Esse contato vai fazer a diferença para elas como leitoras.

No seminário, o senhor falou a respeito da letra cursiva. Os professores, em sua opinião, perdem tempo com o ensino da letra cursiva às crianças?

Ramus: É importante ensinar à criança a escrever a letra cursiva. E o objetivo da letra cursiva é fazer com que a criança escreva de modo a ser compreendida por outras pessoas que lerão aquele texto. No entanto, os professores perdem muito tempo, às vezes, querendo que a criança faça exatamente aquele pontilhado, do jeito que está no livro. A criança já escreve de maneira legível, mas o professor deseja que ela escreva naquele formato previsto, desenhado. Acredito que, se ela já escreve de maneira legível, o tempo que se gasta com treinamento da escrita poderia ser usado de modo mais efetivo.

Pensando na realidade brasileira, com várias escolas públicas sem um corpo de especialistas necessário, como encaminhar um caso de dificuldade de aprendizagem?

Ramus: O ideal é que o professor tenha treinamento e conhecimentos para que seja feito esse diagnóstico e saiba como agir. Quando ele está na sala ensinando e detecta um grupo de quatro, cinco alunos com dificuldade em acompanhar o andamento das classes de alfabetização, ele deve preparar uma intervenção educacional, ou seja, direcionar mais esforços para esse grupo. Seria uma ação para detectar os que estão com dificuldade em adquirir o conhecimento e verificar qual o tipo de dificuldade e, a partir daí, planejar uma intervenção especial para eles, intensiva, tentando acelerar esse processo para esse grupo. Se depois de quatro, cinco, seis meses dessa atenção mais especial, do olho do professor para esse grupo, o aluno continuar não evoluindo de maneira esperada, pode ser que ele realmente tenha um transtorno e, nesse caso, o professor precisa de ajuda médica. Ele deve entrar em contato com a direção da escola e encaminhar o aluno para um diagnóstico preciso, que não pode ser feito pelo professor, mas por um profissional especializado na área.

Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e pós-graduanda em Negócios Digitais. Tem mais de 600 artigos publicados em sites dos mais variados nichos e quatro anos de experiência em marketing digital. Em seus trabalhos, busca usar da informação consciente como um instrumento de impacto positivo na sociedade.

Deixe seu comentário